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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Sobre sangue, café, óleo e... coletes à prova de bala

Sobre sangue, café, óleo e... coletes à prova de bala

(foto: flickr.com/dsugden - CC BY-NC-SA 2.0)

Hábitos comuns do cotidiano – como passar a água quente pelo filtro de papel para fazer um café – envolvem um tipo de física complexa, com aplicações práticas que vão da produção de coletes à prova de bala a processos cruciais para a indústria de grande porte, como a de petróleo. Uma contribuição importante para o entendimento desses fenômenos, relacionados à passagem de um líquido por um meio poroso, foi dada agora por um grupo de pesquisadores brasileiros e suíços. O artigo foi capa da prestigiosa Physical Review Letters (v. 103, p. 194502, 2009).

Passar um líquido através de um material poroso é um ato que faz parte de nosso cotidiano. Por exemplo, fazemos isso quando queremos filtrar algo, como nosso bom cafezinho. Outra observação do dia a dia: geralmente, quanto mais ‘grosso’ (mais viscoso) o líquido, mais difícil sua passagem pelo material poroso. Se colocarmos a mesma quantidade de areia em dois coadores de chá e adicionarmos ao primeiro água e ao segundo óleo, qual desses líquidos atravessará mais rapidamente a areia?
Quanto mais viscoso o líquido, mais difícil sua passagem por um material poroso

Resposta: a água.

Essa ‘velocidade’ estará relacionada com vários fatores: o tamanho do caminho percorrido pelo líquido; sua viscosidade; o tamanho dos grãos de areia; e como estes últimos estão arranjados (ou seja, se estão mais ou menos compactados).

Existem vários problemas de natureza prática em que situações similares ocorrem: da passagem do sangue pelo rim até o fluxo de óleo através de rochas porosas, como se dá no caso do xisto betuminoso (rochas porosas contendo óleo, encontradas em São Mateus do Sul, no Paraná). Essas situações estão relacionadas com problemas básicos ligados aos efeitos que os meios porosos tridimensionalmente desordenados (que não apresentam homogeneidade dos poros, como rochas, tecidos humanos e filtros) causam no comportamento do fluxo de diferentes líquidos quando estes os atravessam.

De fato, essa situação leva a uma divisão dos fluidos em newtonianos e não newtonianos. De forma bastante simplificada, os primeiros são aqueles em que a deformação do fluido é proporcional a um tipo de força com características especiais que o meio poroso aplica sobre o líquido que o atravessa. Essa força é denominada tensão de cisalhamento, e nela as forças são geralmente paralelas, mas agem em sentidos opostos. Estamos acostumados a lidar diariamente com vários fluidos newtonianos: água, óleo, ar etc.

Nos fluidos não newtonianos, as coisas se passam de maneira muito mais complexa: na presença de uma tensão de cisalhamento, ocorre deformação (caso da lama gerada em uma perfuração), mas também pode aumentar a viscosidade do fluido (caso da maizena em água) ou diminuí-la (molho de tomate). Resumindo: para os fluidos não newtonianos, usa-se o termo reologia (estudo do fluxo) para designar os estudos relacionados com a viscosidade, elasticidade, plasticidade e o escoamento da matéria.

Modelagem e simulação computacional

Em artigo recém-publicado, pesquisadores do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará e colegas suíços viram nessas manifestações possibilidades interessantes de estudo por meio de ferramentas de trabalho como a modelagem e a simulação computacional. Daí, foi um passo para se envolverem com o problema do fluxo de vários fluidos não newtonianos quando em contato com meios porosos tridimensionalmente desordenados – aquilo que poderíamos chamar ‘fluidodinâmica computacional’.

Atacaram o problema em dois tempos. No primeiro, usaram como meio poroso o modelo do ‘queijo suíço’, por onde passava um fluido não newtoniano. Normalmente, se esperaria um comportamento muito diferente daqueles presentes em fluidos newtonianos. Entretanto, foi observado que, independentemente das características do ‘queijo’ escolhido (desordem do meio poroso) e da complexidade da reologia do fluido (velocidade de escoamento, densidade, viscosidade), existem condições definidas em que não há variação de comportamento. Ou seja: a despeito de tudo, somente o comportamento de fluxo newtoniano é observado.

Em um segundo momento, foram ver o que acontecia com o escoamento dos chamados fluidos binghamianos, quando estes atravessam os meios porosos. A principal característica desse tipo de fluido — do qual a lama de perfuração é um exemplo clássico — é que ele se comporta como um sólido quando a tensão de cisalhamento é pequena.

Dito de modo simplificado, os autores ‘detectaram’ uma ‘chave liga-desliga’ para o escoamento do fluido binghamiano que é ativada por variações da tensão de cisalhamento.
A pesquisa pode levar ao desenvolvimento de melhores dispositivos para escoar óleos lubrificantes e outros fluidos

Quais as implicações destes resultados?

São muitas. Podem, por exemplo, ter importante impacto no desenvolvimento de melhores dispositivos para o escoamento de fluidos anômalos, como sangue, óleos lubrificantes, pastas, cimentos líquidos, entre outros, através de obstáculos que possam ser representados por diferentes meios porosos (rochas, leitos empacotados, fibras etc.).

Coletes à prova de balas

Uma aplicação bastante recente dessas ideias está no uso de fluidos especiais — denominados pseudoplásticos — na área de segurança, visando ao aperfeiçoamento de coletes à prova de balas, que são muito usados em conflitos urbanos. Em sua concepção tradicional, esses coletes são fabricados usando-se fibras sintéticas especiais, como o Kevlar.

O que aconteceria se as fibras (meio poroso) fossem embebidas em um fluido (não newtoniano)?

Primeiramente, o colete fica mais flexível e, portanto, mais confortável, quando não está sujeito ao estresse. Quando um projétil entra em colisão com esse material (fibra + fluido), fluido se torna instantaneamente muito mais viscoso, melhorando substancialmente o desempenho protetor da vestimenta.
A pesquisa pode subsidiar estudos sobre o transporte de partículas sólidas e de aerossóis

Mas a coisa não fica só nisso. As abordagens decorrentes desse trabalho podem vir a subsidiar estudos ligados a outros fenômenos de transporte que podem ocorrer concomitantemente com o escoamento, como o transporte de partículas sólidas e de aerossóis, bem como a transferência de massa e calor em meios porosos, para ficarmos em poucos exemplos.

Os resultados advindos desses estudos serão fundamentais em aplicações relevantes ligadas ao desenho de novos processos de separação de misturas (por exemplo, a cromatografia e o fracionamento de partículas por tamanho). Mais: permitirá o projeto de dispositivos que abrirão enormes perspectivas para o desenvolvimento de novos processos químicos, com melhor desempenho e menor consumo de energia.

Oswaldo Luiz Alves
Laboratório de Química do Estado Sólido,
Instituto de Química,
Universidade Estadual de Campinas (SP)

Texto publicado na CH 267 (janeiro-fevereiro/2009)
Fonte: Instituto Ciência Hoje

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