Por: Sergio Danilo Pena
Autorretratos seriais do pintor americano William Utermohlen (1933-2007), documentando seu lento mergulho na demência da doença de Alzheimer.
Outro dia li uma citação do profeta Maomé que dizia (minha tradução): “Deus criou os anjos com intelecto e sem sensualidade, os animais com sensualidade e sem intelecto e a humanidade com ambos. Assim, quando o intelecto de uma pessoa supera a sua sensualidade, a pessoa é melhor que os anjos – mas quando a sua sensualidade supera seu intelecto, ela é pior que os animais”.
Realmente, não há nada mais apavorante do que perder o intelecto. É o que acontece na doença de Alzheimer, uma degeneração irreversível e progressiva do cérebro que destrói vagarosamente a memória e o raciocínio, geralmente iniciando-se após os 60 anos.
Para quem não conhece a doença, há vários filmes excelentes que relatam com sensibilidade o seu desenvolvimento e evolução. Para mim o mais impactante deles foi Iris (2001), que conta a história da decadência mental da formidável escritora e filósofa inglesa Iris Murdoch (1919-1999). Dirigido por Richard Eyre, o filme foi indicado em 2002 para três Oscars e Jim Broadbent ganhou a estatueta de melhor ator coadjuvante. Veja abaixo algumas cenas desse filme:
Outros filmes marcantes sobre a doença de Alzheimer foram O filho da noiva (2001), do argentino Juan José Campanella, e Longe dela (2006), da canadense Sarah Polley. Ambos também foram indicados para Oscars (clique nos títulos para ver os trailers).
Mas sem dúvida nenhuma, a documentação mais dramática do lento ‘mergulho’ do paciente na demência de Alzheimer foi feita em uma série cronológica de autorretratos pelo pintor americano William Utermohlen (1933-2007), diagnosticado em 1995 com a doença.
Utermohlen produziu uma verdadeira crônica visual da doença de Alzheimer, um feito de grande bravura artística, especialmente se considerarmos seu medo e ansiedade com relação à doença. Seu trabalho tem ajudado muito na divulgação da consciência pública da doença e da necessidade de pesquisa na sua predição, prevenção e tratamento.
De fato, fiquei muito impressionado quando vi essas figuras. Foram elas que me compeliram a revisar o tema e escrever sobre ele.
Doença da velhice
A doença de Alzheimer é uma doença da velhice. Na maioria dos casos, os primeiros sintomas aparecem após os 60 anos de idade. A prevalência é de aproximadamente 7% na faixa de 65 a 69 anos de idade. A partir daí ela cresce rapidamente. Estima-se que mais de 50% das pessoas acima de 85 anos tenham a doença!
Assim, sua prevalência em uma população reflete o grau de envelhecimento da mesma. Calcula-se que há cerca de 4,5 milhões de americanos com a doença de Alzheimer. No Brasil, não há dados concretos, porém é provável que o número de afetados esteja acima de 1 milhão e que ocorram 100 mil novos casos por ano (veja cálculos aqui).
As expectativas são de que nos Estados Unidos, o número de pessoas acima de 65 anos cresça de 39 milhões em 2008 para 72 milhões in 2030. Paralelamente o número de vítimas da doença de Alzheimer deve dobrar. Assim, estamos no limiar de uma verdadeira epidemia de demência senil.
O acúmulo de casos deverá causar graves problemas médicos para milhões de novos pacientes e também problemas emocionais e físicos para um número crescente de famílias e outros cuidadores. Adicionalmente, os custos associados com a doença representarão uma carga pesada para a sociedade.
A doença de Alzheimer tem uma importante face pública. Entre as vítimas famosas, podemos citar o ex-presidente americano Ronald Reagan (1911-2004, diagnosticado aos 83 anos), a já mencionada Iris Murdoch (1919-1999, diagnosticada aos 75 anos), o ator Charlton Heston (1923-2008, diagnosticado aos 79 anos) e, mais dramaticamente, a belíssima Rita Hayworth (1918-1987), que foi diagnosticada aos 62 anos, embora apresentasse sintomas da doença bem antes disso.
Destruição do cérebro
O elemento fundamental da doença de Alzheimer é a morte progressiva dos neurônios. Mas isso não ocorre de maneira difusa, pois há uma predileção pelos lobos parietais e especialmente pela região chamada hipocampo, sede da memória. Como mostra a figura abaixo, nas fases terminais há uma verdadeira destruição do cérebro.
O que causa essa necrose? Apesar de haver inúmeras teorias, ainda não sabemos a resposta. As duas marcas neuropatológicas da doença de Alzheimer são placas amiloides (extracelulares) e os emaranhados neurofibrilares (intracelulares). A hipótese patogenética principal para explicar essa doença é a chamada “hipótese do amiloide”, que liga a formação das placas com a necrose dos neurônios.
Infelizmente o espaço da coluna não nos permitirá entrar em detalhe sobre essa hipótese, mas o leitor pode avaliar seus prós e contras em uma revisão recente. A verdade é que a cadeia de mecanismos causais ainda não foi estabelecida e ainda não entendemos completamente os mecanismos que iniciam a doença e impelem sua progressão.
Do ponto de vista genético, existem duas formas da doença de Alzheimer: a precoce e a tardia, sendo esta última responsável por mais de 95% dos casos. A forma precoce, como o nome diz, afeta indivíduos abaixo dos 60 anos, é determinada de forma autossômica dominante e pode ser causada por mutações raras em um de três genes já mapeados e clonados. Um desses genes é exatamente a proteína precursora do amiloide no cromossomo 21, o que dá suporte à hipótese do amiloide.
Por outro lado, a forma tardia tem início após os 60 anos de idade e tem uma etiologia complexa, com componentes genéticos e ambientais. Um gene de forte predisposição já foi identificado com certeza: o que codifica uma proteína chamada apolipoproteína E (apoE) no cromossomo 19.
Essa proteína existe em três isoformas, chamadas apoE2, apoE3 e apoE4, diferindo em uma da outra em dois aminoácidos e codificadas por três alelos do gene APOE: ε2, ε3 e ε4, respectivamente. Indivíduos que possuem uma cópia do alelo ε4 têm um risco de duas a três vezes maior de desenvolver a doenças de Alzheimer tardia. Já entre os homozigotos ε4ε4, que têm duas cópias do alelo, esse risco é aumentado cerca de seis vezes!
Como prever e prevenir?
Atualmente, os tratamentos farmacológicos disponíveis para a doença de Alzheimer já instalada podem aliviar os sintomas apenas modestamente e não são capazes de curar a demência. Como consequência, torna-se ainda mais importante a prevenção pela identificação de fatores de risco.
Uma medida preventiva que permitisse a adiar o desenvolvimento da doença em apenas um ano reduziria a prevalência no mundo em milhões de casos. Assim, estratégias preditivas e preventivas da doença de Alzheimer são urgentemente necessárias para evitar o sofrimento dos pacientes e das famílias e impedir que a economia dos países seja ameaçada pela carga financeira dessa epidemia crescente.
Considerando a importância da doença de Alzheimer e a existência de um gene de risco importante, não seria a doença um bom alvo para a prática da medicina genômica? Como discutido na última coluna o conhecimento da predisposição genética de cada pessoa não seria útil na medida em que permitiria ajustes de estilo de vida e, assim, prevenção ou adiamento do aparecimento da doença?
Em 1995 foi publicada uma resolução da Sociedade Americana de Genética Humana e do Colégio Americano de Genética Médica recomendando que o teste do alelo ε4 de APOE não fosse usado para o diagnóstico de predisposição genética para a doença de Alzheimer. Naquela época, o raciocínio foi que o teste não era útil porque não havia ainda nenhuma medida preventiva que pudesse evitar o aparecimento da doença em indivíduos nos quais fosse identificada uma predisposição. Temos aqui ecos da exclamação de Tirésias, no Édipo Rei de Sófocles: “Como é terrível o dom do conhecimento, quando não serve a quem o tem!”
Mas os anos se passaram e houve progresso – atualmente já existem evidências parciais de que algumas medidas de prevenção podem ser efetivas. Temos de levar em conta que a pesquisa médica é muito lenta, pois são necessários grandes grupos experimentais com numerosos pacientes e grupos controle e muitos anos de observação para se chegar a conclusões científicas que, mesmo assim, frequentemente são contestadas por outros estudos. Será que podemos nos dar ao luxo esperar por provas científicas definitivas ou já é hora de agir?
Sabemos que há fatores ambientais bem definidos que parecem contribuir para o risco de desenvolvimento da doença de Alzheimer. Por exemplo, a hipertensão não tratada parece ser um elemento de predisposição. Ademais, há evidência epidemiológica ligando a obesidade e diabetes tipo 2 com a doença, possivelmente por meio de altos níveis sanguíneos da insulina.
É racional supor que já possamos praticar alguma forma de prevenção simplesmente evitando esses perigos ambientais. Imaginemos o caso de uma pessoa com risco genético aumentado para a doença de Alzheimer, por possuir um ou dois alelos ε4. Esse indivíduo se beneficiaria ao tratar energicamente qualquer hipertensão e evitar o ganho de peso e o diabetes tipo 2 com exercícios físicos regulares e dieta saudável.
Adicionalmente, há evidências de que a manipulação da dieta pode ser útil na prevenção da doença de Alzheimer. Vários estudos sugerem três medidas como sendo de valor: (1) ingestão do chamado ’óleo de peixe’, ou seja, ácidos graxos insaturados na posição ômega-3, principalmente o DHA (ácido docosahexenoico, 22:6n-3); (2) ingestão de antioxidantes, especialmente vitaminas E e C; e (3) remoção da dieta de gorduras saturadas, incluindo tanto as de origem animal quanto as hidrogenadas, que já foram em grande parte banidas.
Ajamos logo
Fato 1: o teste genético do gene APOE para diagnóstico da presença ou ausência do alelo ε4 no paciente é simples e efetivo para medir a predisposição genética para a doença de Alzheimer.
Fato 2: apesar de ainda não haver provas científicas absolutas de que a doença possa ser impedida, há evidências sugestivas de que algumas medidas preventivas racionais possam ser úteis.
Temos duas opções: abraçar o teste do gene APOE como rotina médica e usar as medidas preventivas disponíveis, ou rejeitar tal estratégia como sendo prematura e não fazer nada. Obviamente, cada pessoa pode decidir individualmente a esse respeito, desde que apropriadamente informada.
Pessoalmente, sou da opinião que o teste genético da variante ε4 de APOE deve ser amplamente oferecido à população mediante pedido e supervisão de um médico. Para conter a epidemia iminente da terrível doença de Alzheimer, temos de agir logo.
Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
Fonte:Instituto Ciência Hoje
Muito Bom o POST.
ResponderExcluirMinha Avó teve Alzaimer. É realmente uma doença das mais complicadas.
Adiciono que o fato triste é que as pessoas estão perdendo o intelecto mesmo sem a doença.